quinta-feira, 6 de julho de 2023

Marco temporal – na contramão das garantias fundamentais


Por Arlete Moysés Rodrigues* & Tácio José Natal Raposo 

Há de fato um direito a ser reconhecido: não sendo dos povos originários, não poderá ser de mais ninguém

A Constituição Federal de 1988 reconheceu, nos artigos 231 e 232,[i] os espaços ancestrais e as formas de vida dos povos originários: um avanço marcado pela adoção da “Tese do Indigenato”, desenvolvida por Mendes Júnior, em 1902, que ressaltou que o direito à terra é uma condição congênita para esses povos.[ii]

Do ponto de vista territorial, as Terras Indígenas homologadas correspondem a 1.076.0003 kme as não homologadas a 108.344 km2, e estão localizadas, predominantemente, na Amazônia Legal. Essa parte do território abriga 305 etnias que falam 274 línguas. São terras que, ao longo do tempo, têm sido alvo de interesses para negócios que visam acelerar a acumulação de capital. No atual período histórico, tais interesses se intensificam com as propostas da tese do marco temporal que apagam o tempo da formação social brasileira.

Diante disso, apresentamos algumas reflexões, sob o ponto vista da análise espacial e da organização territorial do país, apontando a inconstitucionalidade do Projeto de Lei 490/07 que propõe um marco temporal baseado na data de publicação da Constituição de 1988 e não na realidade da existência do Brasil enquanto nação.

Os senhores da terra, os colonizadores e a tese do Indigenato

As terras ocupadas e dominadas pelos portugueses, na colonização do Brasil, foram determinadas a partir de estratégias como o estabelecimento de sesmarias e os aldeamentos das populações indígenas. Assegurou-se, dessa forma, a propriedade das terras aos colonizadores, a exploração das riquezas da natureza e o aprisionamento dos indígenas, iniciando, com isso, um processo de destruição sociocultural dessas populações originárias.

Essa lógica de se relacionar com a terra e com os territórios era regulada por concepções de direitos do colonizador que desconsideravam os povos originários, as suas vidas e as suas terras, provocando genocídios e dilapidação das riquezas da natureza.

Em 1º de abril de 1680, na capitania do Estado do Brasil, foi publicado o Alvará Real, que determinava que “os índios descidos do sertão” fossem senhores de suas fazendas, para que lavrassem e cultivassem, desobrigando-os de pagarem foro ou tributo, posto que eram primários e naturais senhores das terras. Os direitos não foram efetivados, porém, o reconhecimento no sistema jurídico proveniente da Metrópole, estabelecido por esse Alvará de 1680, inseriu o fundamento dos direitos dos povos originários.

Em 1808, a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil serviu de argumento para aumentar a demanda por terras, provocando novas expulsões, mesmo em aldeamentos jesuítas, em todo o território sob dominação.

A Independência do Brasil em 1822 não alterou esse processo. Em outubro de 1831, uma lei foi publicada, proibindo a escravização de indígenas e declarando-os incapazes aos olhos jurídicos, cabendo ao Estado, então, as decisões sobre suas vidas. Ao considerá-los órfãos, promoveu-se uma inversão contraditória da premissa de direito sobre a terra, que passou a ser uma concessão do Estado, apesar da ainda vigência do Alvará de 1680.

Em 1850, a Lei n. 601 – Lei de Terras – instituiu um novo regime, legitimando a propriedade e os domínios de terras obtidos pelas sesmarias, potencializando, dessa forma, o processo histórico de despossessão das terras ancestrais. As áreas dos aldeamentos e/ou toda área territorial – ou seja, os espaços de vivências dos povos originários – foram definidas por essa Lei como “terra devoluta”, autorizando o Estado a vender/ceder como e quando julgasse mais conveniente.

João Mendes Júnior, na obra intitulada Os Indígenas do Brasil, seus Direitos Individuais e Políticos, escrita em 1902, critica que as áreas de vivência dos indígenas tenham sido delimitadas como terras devolutas, pois os direitos territoriais indígenas, enquanto direito originário, eram anteriores ao Estado que se implantava. Para Mendes Júnior, as terras pertenciam aos povos originários em virtude da originalidade do direito, fundado no Alvará de 1º de abril de 1680, que não foi revogado pela Lei de 1850. Direito, inclusive, que jamais poderia ser confundido como uma posse sujeita à legitimação, visto se tratar de uma posse congênita; além disso, em não sendo dos indígenas, não poderia ser de mais ninguém.[iii]

A Tese do Indigenato, como é conhecida a contribuição de João Mendes Júnior, consiste na afirmação de que as terras dos povos indígenas não se submetiam ao sistema estabelecido pela Lei de Terras de 1850, dado seu caráter de posse e ocupação particular, de posse congênita e não adquirida, isto é, não seria um fato dependente de legitimação, diferentemente da ocupação, como fato posterior, que dependeria de requisitos que a legitimassem.

Desse modo, as terras indígenas não poderiam ser consideradas devolutas, nem mesmo no conjunto de normas legais não indígenas, pois se trata de um direito assegurado pela originalidade, anterior à pátria colonizadora e das posses conseguidas por invasões, por vezes sangrentas. E muito menos relacionadas a um marco temporal definido por uma Constituição que lhes garante o direito de ancestralidade decorrente do processo de ocupação do espaço territorial.

Pelo Indigenato, entende-se que as terras dos povos originários, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas como propriedades que eles adquiriram por simples ocupação, pois se trata, sobretudo, de um atributo do indivíduo e da coletividade, conferido a partir de seu nascimento.

O Indigenato nos textos constitucionais

A partir da fundamentação da Tese do Indigenato de 1912, de Mendes Júnior, os direitos dos indígenas passaram a estar presente nas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967/69, conforme mostra o quadro 01.

Quadro 01 – O direito dos povos indígenas nas Constituições brasileiras

Ano da CFArtigos que tratam dos direitos dos indígenas à terra
Constituição Federal de 1934Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (BRASIL, 1934).
Constituição Federal de 1937Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las (BRASIL, 1937).
Constituição Federal de 1946Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem (BRASIL, 1946).
Constituição Federal de 1967Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL, 1967).
Emenda Constitucional número 1/1969Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL, 1969).
Fonte: Compilado das Constituições Federais do Brasil com base em Cavalcante (2016).

Como se observa, em todas as Constituições, desde 1934, há o reconhecimento de direito à posse de terras dos povos originários. Mesmo com alguma adesão à Tese do Indigenato, sobrepesavam nos textos constitucionais o fato dessas terras serem bens públicos estabelecidos como devolutos e propriedade da União, podendo ser disponibilizadas pelo Estado à apropriação exclusiva pela possibilidade de posse e propriedade privada.[iv]

Na década de 1970, quando houve a maior vinculação do país à economia global, os ataques contra as terras dos povos originários foram intensificados. Apesar de haver uma tradição do Indigenato, tanto nos textos constitucionais que garantiam a posse dos indígenas sobre as suas terras, quanto na emenda nº. 1 na Constituição de 1969, previa-se, além da posse, o usufruto exclusivo de todas as riquezas e a inalienabilidade das terras, prevalecendo um contínuo desrespeito aos direitos congênitos e ancestrais e constitucionais.

No processo histórico pelo reconhecimento de sua ancestralidade, os povos indígenas passaram a exigir a legalização de suas terras. Mediante a luta e as pressões, foi criado o Estatuto do Índio (EI) – Lei n.º 6. 001/73[v], o primeiro documento oficial do Estado brasileiro em que se encontra o termo “terra indígena”. No seu art. 17 (BRASIL, 1973), o documento prevê três modalidades de terra indígena:

Art. 17. Reputam-se terras indígenas: I – As terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição; (Regulamento) (Vide Decreto n.º 22, de 1991) (Vide Decreto n.º 1.775, de 1996);

II – As áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

III – As terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.

O Estatuto se notabiliza com o preconceito com os povos originários, denominando-os “silvícolas”, e com a proposta de aculturação, porém, ao mesmo tempo, estabelece a definição de terras indígenas, tanto de áreas ocupadas como de espaços de “reservas”. Os movimentos indígenas e seus aliados se apropriaram do avanço contido no Estatuto que institui as terras indígenas e, assim, potencializaram a luta pela Tese do Indigenato enquanto direito originário.

Os avanços estabelecidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 foi resultado da construção histórica, forjada na luta e na resistência dos povos originários, dos aparatos legais formados através do reconhecimento do direito congênito à terra, e das normas constituídas desde o Estado colonial

A Constituição Federal de 1988, além de assegurar o direito dos originários sobre suas terras, avançou na consideração e na designação dos povos originários. Avançou, também, na reposição de reparações espaciais e sociais, instituindo um capítulo específico aos direitos dos indígenas, no título VIII, “da ordem social”, cujo objetivo é, conforme o artigo 193 da Constituição, promover o bem-estar e a justiça social.

O Artigo 231 estabelece que compete à União demarcar e proteger as Terras Indígenas e garantir o respeito a todos os bens dos povos indígenas. Além disso, evidencia a evolução na adoção da Tese do Indigenato, reparando e repondo proposições de regulações a atributos de direitos nos incisos de 1 a 7 do Artigo 231, tratando de maneira mais detalhada os direitos territoriais dos povos originários. Na Constituição Federal de 1988, o Indigenato significou também uma conquista histórica.

A tese do Marco Temporal ignora o tempo histórico

A evolução da adoção da Tese do Indigenato, amalgamando as perspectivas do direito congênito dos povos originários à terra, instituindo esse direito como forma de promoção de justiça social, está sob ameaça pelo Projeto de Lei 490 de 20/03/07, que institui a tese de um Marco Temporal para demarcações de Terras Indígenas, calcada não na formação da sociedade e do espaço nacional, mas na data do reconhecimento formal dos direitos dos povos originários A norma prevista no PL 490 constitui um instrumento jurídico que visa dificultar, rever e reverter os direitos reconhecidos dos povos originários, pretendendo instruir que novas Terras Indígenas serão demarcadas somente se os reivindicantes demonstrarem ter sua posse na data da promulgação da Constituição de 1988, ou seja, até 5 de outubro de 1988. Configura um dispositivo jurídico e político que faz um ataque sem precedentes históricos aos direitos congênitos, ancestrais e espaciais, dos povos originários. O tempo histórico é abolido para que se permita a expansão do capital.

Ao PL 490/07, foram apensados mais 20 projetos de Leis, potencializando seu poder de agressão contra os povos originários e as riquezas da natureza. Além da tese do Marco Temporal, atualmente, o PL prevê: (a) a alteração de novas demarcações de Terras Indígenas, retirando a atribuição do Poder Executivo para o Congresso; (b) a retirada do direito de uso exclusivo aos povos originários; (c) a possibilidade de liberação de exploração dos corpos de água com apelo de produção energética; (d) a exploração das riquezas minerais por meio da liberação de garimpos; (e) a expansão da malha viária sobre as Terras Indígenas sem a prévia negociação com os seus moradores; (f) as incursões e a permanência das Forças Armadas sem consultas aos povos; (g) os cultivos de transgênicos e outros vegetais modificados geneticamente; (h) o contato com povos isolados; entre outras violações.

Com esse teor de violação, a “votação” do marco temporal, no Supremo Tribunal Federal, começou em 2021, ficou suspensa até maio de 2023 e, agora, está novamente suspensa. A tramitação em regime de urgência do PL 490/07, no Congresso, tenta acelerar a destruição do tempo histórico e do espaço nacional. O PL possui um grau de desrespeito que se aproxima dos crimes de eliminação física, pois, além de desconsiderar o direito congênito dos povos originários às suas terras, estabelece, nas medidas apensadas, uma ruptura ao acesso de seus bens e riquezas mais essenciais às satisfações biológicas, coletivas, afetivas, culturais e inclusive de preservação do meio ambiente.

A tese do marco temporal e seus projetos de lei configuram a premonição da destruição de formas de sociabilidades distintas da capitalista. Tem como ideário uniformizar o padrão de organização espacial que transforma as riquezas da natureza e as pessoas em recursos para sua exploração, esgotamento e plena destruição sob uma forma de propriedade que tenta eliminar a ancestralidade. Desconhece que qualquer alteração em relação à posse/propriedade da terra só pode ser constitucional, e não proveniente de leis ordinárias.

O anacronismo do PL 490/07 e da tese do Marco Temporal revela o aprofundamento do avanço das práticas capitalistas, compondo as bases da produção econômica e da acumulação, tencionando a conversão das posses comuns em um sistema de propriedades. Ademais, mantém a continuidade da usurpação das garantias e dos direitos constitucionais desses povos por iniciativas estatais, de espoliações por despossessão,[vi] expulsões e expropriações de suas posses, associando-se à aceleração e à ampliação das práticas predatórias do garimpo, à expansão urbana, à agropecuária, aos extrativismos ilegais entre outros.

Reverbera a premissa da geopolítica estatal de controle autoritário das terras em posses ou em reivindicações por esses povos, que nunca foram vinculados ao plano nacional, tornando-os historicamente alvo da barbárie das mesmas instituições de Estado que deveriam considerá-los e defendê-los. Há uma constante quebra das regras que o Estado impõe a si mesmo, favorecendo sempre a lei do mais forte como elemento intrínseco de sua existência em qualquer fase ou forma que assuma.

A tese do Marco Temporal e o PL490/07 precisam ser contestados. Os direitos dos povos originários são garantias fundamentais de justiça social, conforme expresso no Alvará de 1680, na Tese do Indigenato e na Constituição Federal de 1988. São cláusulas pétreas, por isso, não podem ser relativizados por Leis nem por recomendações de normas. A desregulamentação pretendida pelo dispositivo persegue o objetivo de servir de instrumento jurídico para prosseguimento de ilegitimidades contra as Terras Indígenas, complexificando os ataques contra os direitos dos povos originários para impor a lógica capitalista.

São parte do aparato da geopolítica dos atuais ciclos de acumulação por espoliação e despossessão, marcados pela captura do Estado por uma fração de classe sequiosa por lucros, com produção de commodities e exploração das riquezas encaradas como recursos naturais.

O anúncio do fim do reconhecimento do direito congênito dos povos originários à terra, limitando a sua ancestralidade ao mero sentido de presença física em determinadas frações de espaços, e numa determinada data, corresponde a um padrão de apagamento histórico visando impor, por via estatal, a força dos direitos dos supostos proprietários contra o direito dos que estão na posse desde tempos imemoriais. Ou seja, desmantela os sentidos amplos de justiça social e proteção ambiental, contrariando os estudos que demonstram que as terras de uso exclusivo desses povos protegem mais as riquezas da natureza e o meio ambiente.

Assim, é oportuno um resgate vigoroso dos ensinamentos de Mendes Júnior e toda a tradição gerada a partir da Tese do Indigenato (1902) e estabelecida na Constituição de 1988, que o direito à terra dos povos indígenas é um direito congênito e não uma concessão do Estado. Dito de outra maneira, à luz da tradição legislativa do país, o PL 490/07 e a tese do Marco Temporal não alcançam as terras dos povos originários, pois elas derivam de um direito que jamais poderá ser confundido com uma posse sujeita à legitimação, visto se tratar de uma posse congênita. Há de fato um direito a ser reconhecido: não sendo dos povos originários, não poderá ser de mais ninguém.

Por último, salienta-se que o PL 490/07 e o Marco Temporal, associados a um número maior de dispositivos jurídicos e políticos, também têm atacado outros povos, como os tradicionais – quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, comunidades rurais e de agricultura familiar, comunidades urbanas e periféricas. Essa instituição do soterramento desses modos de vida repercute na destruição dos seus espaços e da heterotopia que marca a geografia do território do país, em detrimento da pretensa homogeneização do espaço mercadoria, subsumido ao capital e ao capitalismo.

* Arlete Moysés Rodrigues é professora aposentada do Instituto de Geografia da Unicamp. Autora, entre outros livros, de Moradia nas cidades brasileiras (Contexto).

* Tácio José Natal Raposo é doutor em geografia pela Unicamp e professor da rede estadual de Roraima.

A primeira versão deste texto foi publicada em: https://aterraeredonda.com.br/marco-temporal-na-contramao-das-garantias-fundamentais/#_ednref6

Notas


[i] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

[ii] MENDES JÚNIOR, J. Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos. In: CUNHA, M. C. da; BARBOSA, S. R. (Orgs.) Direito dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018, p. 319-361.

[iii] MENDES JUNIOR, J. idem.

[iv] Ver RAPOSO, Tácio José Natal. Avanço da urbanização e das práticas capitalistas na Amazônia Setentrional e o caso da cidade de Pacaraima sobre a terra indígena São Marcos – RR / Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências, Campinas/SP, 2022. Disponível em: https://www.repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/1259859?guid=1684426425909&returnUrl=%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1684426425909%26quantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d1259859%231259859&i=1

[v] BRASIL. Estatuto do Índio, Lei n.º 6.001, de 1973, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%206.001%2C%20DE%2019,sobre%20o%20Estatuto%20do%20%C3%8Dndio.&text=Art.%201%C2%BA%20Esta%20Lei%20regula,e%20harmoniosamente%2C%20%C3%A0%20comunh%C3%A3o%20nacional.

[vi] Ver HARVEY, David. O Neoliberalismo. História e Implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

domingo, 24 de outubro de 2021

Livro: Planejamento territorial: reflexões críticas e perspectivas - Volume I

Capítulo Direito à cidade e o Estatuto da Cidade 

A Lei 10.257/01, consoante seu capítulo I, art. 1o, parágrafo único, explicita que “para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. E, em seu art. 2o dispõe que “

Há vários textos, livros, debates sobre a importância do Estatuto da Ci- dade e da aplicação de seus instrumentos sendo que a maior parte da bibliografia é de juristas, planejadores urbanos, urbanistas. Poucos geógrafos têm publicações sobre o tema embora a participação dos geógrafos no de- bate seja intensa. Este texto tem por meta destacar possibilidades do Estatuto e apresentar algumas de suas controvérsias, contradições, conflitos e virtualidades.

Embora a função social da propriedade urbana conste desde 1934 nas várias Constituições Brasileiras, a explicitação de seu significado só ocorre em 2001 com a promulgação do Estatuto da Cidade, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.

Trata-se de uma lei construída com a participação ativa dos movimentos da sociedade civil que lutam pela reforma urbana. Em 1988, apresentaram ao Congresso Constituinte a Emenda Popular pela Reforma Urbana, que já continha os germes dos Instrumentos do Estatuto.

Para acessar o capítulo na íntegra acesse o seguinte link: https://www.slideshare.net/blogarlete/planejamento-territorial-volume-1-reflexes-crticas-e-perspectivas

terça-feira, 17 de março de 2020

A favela nos tempos do coronavírus*

Renato Balbim, geógrafo-urbanista, é pesquisador e professor visitante da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI).
Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a
sabedoria nos chega quando já não serve para nada
(Gabriel G. Márquez)

Vivemos a primeira pandemia da globalização com níveis de letalidade relativamente altos e capacidade já comprovada de pôr em xeque o sistema de saúde mundial, inclusive dos países ricos.
Diferente do que aconteceu com o zika vírus, que não evoluiu para a condição pandêmica porque acabou por se concentrar nas áreas tropicais, particularmente em regiões mais pobres, ou da pandemia do H1N1 que não sobrecarregou o sistema de saúde, o coronavírus tem se alastrado rapidamente por todo o mundo sem qualquer distinção social ou geográfica, além do seu vetor inicial: pessoas que viajam internacionalmente, basicamente abastados, o que explica os casos entre políticos, personalidades públicas e astros do cinema e do esporte, contribuindo para as manchetes que aterrorizam a população.
Diversas questões têm surgido, algumas de grande interesse. Será que essa característica do coronavírus colaborará no desenvolvimento de uma globalização mais justa e igualitária? Ao final desta pandemia seremos mais xenófobos ou mais empáticos? Vamos enfim nos atentar para o fato de que as tragédias são globais e que, assim como as mudanças climáticas, os vírus não respeitam fronteiras? Ou haverá uma pandemia dos ricos e outra relacionada aos pobres?
Até o momento as notícias que nos chegam são relacionadas principalmente à pandemia dos ricos. Mas como esse cenário de catástrofe global irá se desenrolar entre os12 milhões de brasileiros que moram em favelas? Não há qualquer resposta a essa pergunta. Em outros países pobres a preocupação também parece apenas se iniciar. Qualquer prognóstico deve ter como base a lógica da urbanização de cada região e país, as características geográficas e sociais desses assentamentos e as atuais condições de vida de cada lugar. As possíveis soluções também devem ser assim adaptadas e passarão fundamentalmente pela solidariedade das comunidades.
Historicamente, moradores de favelas não são assistidos por políticas públicas, vivem sem saneamento básico, dividem espaços restritos, confinados, mal ventilados, com problemas estruturais e em domicílios e áreas com alta densidade demográfica.
Essas pessoas também não se deslocam em aviões e qualquer contaminação pelo coronavírus quando acontecer será estrangeira!
Políticas de urbanização de favelas e melhorias habitacionais têm como uma das suas principais ações a melhoria de condições de ventilação e iluminação de casas, buscando com isso diminuir a insalubridade e os casos de doenças, sobretudo respiratórias, endêmicas. Tuberculose e pneumonia são mais corriqueiros em favelas brasileiras do que se imagina e muito mais do que se tem reportado ao sistema de saúde. Na Rocinha, um caso bastante estudado, são 372 casos de tuberculose por 100.000 mil habitantes. Comparando com o coronavírus (Covid-19), são 175 casos por grupo de 100.000 na China, onde o pico de incidência já foi ultrapassado, e de 46 por 100.000 na Itália, que em breve atingira também esse pico. O que interessa aqui não é comparar cada uma das enfermidades, mas sim revelar que nas áreas pobres do Sul Global, favelas brasileiras em especial, o coronavírus atingirá uma população extremamente debilitada, com forte incidência de doenças pulmonares anteriores e condições de vida totalmente insalubres. Qual será a letalidade dessa enfermidade na Rocinha? E qual será no vizinho rico bairro de São Conrado? Quais os grupos de maior risco em cada localidade? Quais equipamentos públicos e estratégias serão organizadas levando em conta contextos tão díspares?
A precariedade das condições e do espaço de vida dos mais pobres, incluindo nutrição e acesso ao sistema de saúde, impõe uma política específica para conter a disseminação do coronavírus. Somam-se ainda outros fatores, como o atual surto de sarampo em todo Brasil.
Doença respiratória, extremamente contagiosa que pode evoluir para quadros de pneumonia e outras complicações, o sarampo foi paulatinamente erradicado no país que se tornou completamente livre da doença em 2016. Em 2019, o sarampo voltou de maneira rápida, atingindo principalmente crianças e jovens, seu grupo de maior risco. Sua associação com o coronavírus parece bombástica na perspectiva que expande o grupo de risco de morte podendo incluir também os mais jovens.
Ao pensarmos como o coronavírus irá se distribuir no país, e quais serão seus impactos, devemos lembrar que o desenvolvimento brasileiro impõe a morte prematura de milhares de pessoas pobres infectadas por doenças medievais e violência de diversas ordens. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a expectativa de vida nas áreas mais pobres chega a ser de apenas 58,6 anos (Grajaú), contrastando com os 80,5 anos em Moema.
É neste contexto que o Brasil terá que enfrentar a pandemia do coronavírus. Ou, não!
Jovens e adultos saudáveis, nutridos, essa grande parcela da classe média trabalhadora e dos ricos, tem baixo risco de desenvolver formas mais severas da doença. Nesses casos seria apenas uma “gripezinha”, para alguns até assintomática, mas altamente transmissível!
Esse caldo de segregação, exclusão e diferenciação social indica o elevado risco de que em momento de crise se negligencie ainda mais nossa condição básica de vida em comunidade, o zelo pela saúde do outro, a própria preservação da espécie, e não de uma raça ou classe social. Como outras ações xenófobas e autoritárias mundo afora têm revelado, a falta de empatia e solidariedade é também um vírus letal e que se alastra facilmente.
Em recente artigo sobre a pandemia, Debora Diniz afirma que toda biopolítica se torna uma necropolítica quando os governos e a sociedade determinam quem irá morrer ou viver. De maneira geral a biopolítica refere-se ao uso do poder do Estado para regular, organizar e controlar a população através das condições de vida. Geopolítica e biopolítica são termos cunhados por Rudolf Kjellén, em 1905, sendo que a biopolítica foi usada no nazismo e é arma recorrente de governos autoritários. A biopolítica é o instrumento geopolítico utilizado por Trump quando fecha o espaço aéreo norte-americano para a Europa, mas não para a Inglaterra e outros aliados do momento.
Recentemente, o termo biopolítica foi “atualizado” para dar conta da perversidade da atual condição humana. Surge então a necropolítica, uma variante desse conceito que chama atenção para a total perda de caráter de governantes que, intencionalmente, definem estratégias e políticas que resultam na morte de corpos que não mais servem ou não se adaptam aos seus padrões. A necropolítica é a ação violenta do Estado que mata jovens negros pobres e periféricos no Brasil. É a necropolítica que define ou justifica não abrir inquérito policial para investigar a LGBTfobia Brasil afora. É essa mesma necropolítica que perpetua um modelo de desenvolvimento das cidades que não supera as condições precárias dos assentamentos urbanos, mesmo havendo aparato legal, conhecimento técnico e mecanismos de financiamento para tanto.
O fato é que a erradicação da precariedade habitacional foi e continua sendo uma forma de provisão de terra urbana bem localizada para os interesses do capital. É assim que as favelas localizadas em áreas de interesse do capital imobiliário em São Paulo têm a estranha condição de combustão espontânea. Foi assim que aconteceu com o higienismo do final do século XIX e começo do XX, quando a biopolítica do governo Rodrigues Alves, o urbanismo de Pereira Passos e a medicina social de Oswaldo Cruz deram início à Revolta da Vacina em 1904 no Rio de Janeiro.
A persistência durante séculos de um urbanismo dedicado à especulação imobiliária e à segregação socioespacial nos faz chegar aos dias de hoje com enorme temor sobre os impactos do coronavírus nas áreas de favelas e cortiços das cidades brasileiras.
O coronavírus não faz distinção de raça, cor, credo ou renda. Ou seja, ainda que os assentamentos precários possam ser áreas de maior incidência e maior mortalidade, a propagação do vírus não será contida nesses espaços. Assim como acontece com as enchentes de todos os anos, os piores casos e o maior número de mortes irão se concentrar nas áreas de maior risco, as favelas, mas os impactos estarão por toda a cidade.
“Clínica da Família Maria do Socorro Silva e Souza”, Rocinha, Rio de Janeiro. PHOTO: VIVI ZANATTA © PAHO/WHO
Nesse caso, a única maneira de beneficiarmos a nós mesmos, independente de nossa condição de moradia ou renda, é trabalharmos para que o vírus não se espalhe pela cidade como um todo. Sim, a favela faz parte da cidade!
Há ainda a possiblidade de que o autoritarismo instalado no Estado brasileiro use dessa situação para confinar e diferenciar parcela da população. Nesse caso as consequências são imprevisíveis, mas serão sem dúvida catastróficas.
Protocolos internacionais de combate à pandemia precisam ser urgentemente adaptados para darmos conta da condição de vida de milhões de brasileiros expostos a riscos muito maiores de contaminação e em condições de saúde que resultarão no aumento da letalidade dessa doença a padrões ainda não computáveis.
É também urgente a instalação de uma rede de informação e solidariedade entre comunidades e organizações sociais comprometidas com o cuidado das populações mais carentes para que medidas adaptadas sejam debatidas, soluções e informações circulem, e que juntos possamos fazer frente à necropolítica do Estado brasileiro.
Em tempo, ao contrário do anti-presidente da República, organizações como a Fiocruz, Congresso Nacional e Ministério da Saúde, bem como esforços de estados, municípios, ONGs e várias outras instituições públicas e privadas, têm tratado o tema da pandemia com seriedade e competência. Entretanto, não há notícia de nenhum plano de contingência específico para a parcela da população que vive em assentamentos precários, cortiços e favelas. É urgente que isso ocorra. O início é a formação de redes de informação que unam comunidades e técnicos de áreas diversas comprometidos com a vida humana.
As recomendações de higiene e contato social podem não ser satisfatórias e nem totalmente aplicáveis nessas áreas. E, como já apontado, a precariedade urbanística provoca e intensifica a debilidade sanitária, expondo as condições mais severas da doença não apenas a idosos, mas também a crianças, jovens e adultos com a imunidade debilitada, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde e aumentando a mortalidade na sociedade como um todo.


*Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil em 17 de março de 2020.